Astor, o apostador


O despertador começa a tocar um pouco mais cedo do que o habitual. Ele acorda de mau humor e estende o braço para desligar o alarme. Não alcança o botão. Tenta mais uma vez e de novo, dá errado. Só consegue na terceira tentativa. Aquele não ia ser um bom dia.

Pelo menos, não estava atrasado, o que era raro. Calmamente, ele chega ao prédio do trabalho e no estacionamento encontra a sua vaga da sorte. Em qualquer outro dia, ficaria muito feliz por conseguir estacionar ali. Hoje era um dia diferente.

Entra no prédio da empresa torcendo para não encontrar nenhum conhecido no caminho até a sua mesa. A missão fracassa logo no início e, encontra o seu Silva perto do elevador. Ele o cumprimenta: — Bom dia, Astor. Você está bem? Está com aquela cara que fica quando perde uma aposta. Foi isso? Você perdeu alguma aposta?
O Astor responde: — Perdi todas elas… Todas… Mas não se preocupe.
Ele desce no seu andar e complementa: — Tenha um bom dia no trabalho, seu Silva.
Quando a porta fecha, ele continua baixinho: — Eu pelo menos, vou precisar.

Passa pela recepção com um cumprimento tímido e apressado. Não funciona. Cláudia, animada logo pela manhã, responde: — Bom dia, Astor. Qual é a aposta de hoje?
Sem parar de andar, ele diz: — Não tem aposta nenhuma.

Encontra a mesa da sua baia tranquila. O plano de chegar cedo foi uma boa solução para encontrar menos gente. Já as próximas horas seriam difíceis. Liga seu laptop e abre o navegador. Logo de cara, aparece um site de apostas, que ele tinha acessado no dia anterior. Rapidamente, Astor fecha aquela aba e trata de se concentrar no trabalho.

Pouco tempo depois, chega o Praxedes, seu vizinho de baia. Com um papel amassado na mão, ele diz: — Astor, quer apostar quanto que daqui eu acerto o cesto para papel do lixo reciclável?
Reunindo todas as suas forças, Astor ignora totalmente o comentário e continua olhando para a sua tela. Estranhando a situação, Praxedes o cutuca: — Ei, Astor. Estou propondo uma aposta aqui.
O Astor é obrigado a responder: — Praxedes, desculpa, mas eu estou atrasado para entregar o meu relatório. Tenho que me concentrar.
Confuso, o Praxedes diz: — Nunca vi você recusar uma aposta. Está bem, este relatório deve estar muito atrasado, mesmo.

Astor, então, coloca seu fone de ouvido e continua fingindo concentração. Na verdade, ele está muito concentrado em ignorar o máximo de pessoas possível naquele dia. É um esforço imenso, mas com certeza, vai ser recompensador.

Hora do almoço e até ali, tudo bem. Os fones são seus poderosos aliados, e se forem usados o dia inteiro, não vai haver nenhum problema. Só que o almoço também é um desafio. Ele recusa quatro ofertas de companhia para o almoço com a desculpa de que o trabalho está muito atrasado.

Com a barriga roncando, espera o escritório ficar vazio e corre para a vending machine do lobby. Não tem ninguém. Finalmente, alguma sorte. Pega um sanduíche e se vira em direção ao seu lugar quando ouve alguém dizer: — Astor, quer apostar que eu como o sanduíche mais rápido que você?

Astor nem espera a frase acabar e sai correndo para o seu lugar, deixando o Hildebrando ali parado, pensando no quanto o Astor era competitivo. Nem esperou os dois sentarem para começarem juntos. Desse jeito, a aposta não vale.

De volta à segurança da sua mesa e dos fones de ouvido, Astor come seu sanduíche tranquilamente. Quase metade do dia já foi resolvido, ele só precisa resistir um pouco mais. Passam mais duas horas até que Praxedes o chama mais uma vez: — Astor, está na hora do happy hour que combinamos com os clientes. Vamos?
Ele tem que inventar uma desculpa: — Sinto muito, Praxedes, não vou poder. O Praxedes olha surpreso para ele e diz: — Como assim? Isso também é trabalho! Além disso, você adora happy hours com o cliente! E ainda por cima, não vi você fazendo nenhuma aposta hoje. Você está doente?

Agradecido por receber de presente a desculpa ideal e um pouco irritado por não ter pensado nisso antes, o Astor fala: — É, não me sinto bem desde que acordei. Melhor ir para casa. Bom happy hour para vocês!

Apesar do que disse, ele não pode ir para casa. É arriscado demais, as chances de encontrar o porteiro e outros conhecidos no prédio é muito grande. Considera todas as alternativas possíveis e imagináveis, mas o melhor que pode fazer é dirigir por 2 horas pela cidade. Só assim vai conseguir triunfar.

Faltam só 10 minutos. Ele para no semáforo feliz porque sabe que vai conseguir. Mas descobre que parou ao lado do bar em que Praxedes levou os clientes ao happy hour. Um deles, reconhece o Astor e vai até a janela do carro: — Astor, nem apareceu, hein? Estaciona logo e vem participar de uma aposta que você vai adorar.

Sem saber o que fazer, ele finge que está tão doente que não consegue nem falar. Aponta para a própria garganta, mexe a boca e começa a produzir alguns sons baixinhos, como se fosse um gato passando mal. Seu cliente já tinha bebido um pouco e começa a rir: — Ah, Astor, você é uma figura, mesmo hahahaha.

O semáforo finalmente abre. Astor se despede do cliente com um sinal e vai a caminho da terapia. Não é dia de sessão, mesmo assim, ele tinha combinado de aparecer por lá às 18 horas. Depois de um dia difícil estava quase conseguindo o que queria. Ele estaciona seu carro e anda até o consultório.

Durante todo o trajeto, percebe a sensação de triunfo e superação. Uma sensação muito familiar e que ele tanto adora. Abre a porta do consultório com um largo sorriso e diz: — Boa noite, doutora.
A terapeuta olha para ele e sorri de volta: — Boa noite, Astor. Você parece bem confiante, hoje, não é mesmo?
Ele responde: — Claro que sim. Acabei de ganhar a aposta mais difícil da minha vida. Você achou que eu não conseguiria, mas acredite: fiquei 24 horas sem apostar.
Então, ela pergunta: — Você tem certeza disso?
O Astor, agora um pouco mais inseguro, diz: — Claro que eu tenho certeza. E, a gente combinou que você iria confiar na minha palavra, não preciso de nenhuma prova.
Mais uma vez, a terapeuta sorri e diz: — Não estou duvidando da sua palavra, só do seu julgamento. Você diz que ficou 24 horas sem apostar, mas fez isso só por causa de uma aposta entre nós. Então, a verdade é que você passou o dia inteiro apostando.
Agora, o Astor reconhece a derrota: — Você tem razão, doutora. Eu tenho que dar um jeito nessa minha obsessão e vou começar isso já.
A terapeuta, finalmente com alguma esperança pergunta: — Vai mesmo, Astor?
Astor responde: — Claro que sim. Quer apostar quanto?

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