Informante
Ele nasceu em Vladivostok, morou em Moscou por alguns anos, muitos deles em treinamento e agora, vivia em Houston. Já tinha se acostumado com aquele rancho calmo nos limites da cidade texana. Não queria chamar atenção. Não podia chamar atenção.
Quem passava por lá nem desconfiava da verdade. E, quase ninguém passava por lá. No máximo, alguém perdido na estrada parava para perguntar sobre o caminho até o Lyndon B. Johnson Space Center.
Os poucos que tinham contato com aquele simples fazendeiro estrangeiro ouviam seu sotaque e pensavam falar com um francês. Isso também era parte do treinamento. Seria impossível transformar em poucos anos o sotaque de russo em um sotaque totalmente norte-americano. Mas a mistura com o francês confundia os habitantes daquele país bem o suficiente.
Era o infiltrado perfeito em um disfarce impecável. Sempre dizia que para ser agente secreto era preciso ser um agente discreto. Sabia que muitos bons profissionais foram descobertos por pura vaidade. Queriam posições importantes, rodar nas esferas elitistas da sociedade. Ele não assim. Era famoso por não se esforçar pela fama. E, isso, tinha certeza, diferenciava os bons dos ótimos. O foco no trabalho ao invés do foco em si mesmo.
Talentoso e concentrado em cumprir seu dever, seguia a risca os manuais mais cautelosos da organização. Por isso, sua única fonte de informação eram as cartas oficiais. Documentos cada vez menos frequentes, que não raramente, ficavam meses, até anos sem aparecer na sua caixa do correio. De nada adiantava jornais, rádio ou TV daquele país ocidental. Não dava para confiar na farsa cuidadosamente criada pelos norte-americanos de que aquele era o país mais incrível do mundo. Para ele, só interessavam os dados técnicos e inquestionáveis do alto comando.
Tinha uma rotina simples de tirar leite das suas vacas, pescar no rio San Jacinto, se exercitar… Nada fora do comum. Não precisava de muita coisa para viver. Até mesmo havia se acostumado à dieta de vinhos, queijos, cafés e cigarros para construir o papel de francês. Ele acreditava tanto no personagem que não conseguia mais separar a obra do autor. Um efeito colateral aceito de bom grado, por um bem maior.
O dia a dia no rancho era muito distante da sua real intenção. Porque a corrida espacial continuava acirrada. Assim como alguns países navegaram para conquistar e colonizar o mundo, estava na hora de conquistar e colonizar no espaço. E, para ajudar a USSR, ele estava na vizinhança certa.
De vez em quando, conseguia um bico no complexo espacial, principalmente para realizar obras. Não podia se denunciar também um engenheiro espacial que entendia exatamente o que estava acontecendo. Cumprindo o papel, ele chegou a pintar paredes do Centro de Controle de Missão Christopher C. Kraft Jr. e ajudar em uma modernização do Edifício 30. O motivo para o esforço é claro que não tinha nada a ver com o bom dinheiro pago em cada trabalho. A inteligência soviética já o tinha munido com recursos suficientes para nunca mais ter que se preocupar com isso. Apenas os medíocres trabalham por algo tão comum como o dinheiro. Para ele, tudo que tinha preço era barato demais. E, o dinheiro é tão barato que já vem com o seu preço impresso.
Então, não era para ajudar nas despesas que ele aparecia de tempos em tempos no complexo espacial, mas para rondar o local. Às vezes, fazia anotações, desenhos e plantas detalhadas. Outras vezes, recorria a recursos menos sofisticados e ainda assim, mais eficazes como revirar o lixo.
Já tinha conseguido muitas informações desde a missão STS-51-C, quando se infiltrou pela primeira vez na base. Às vezes, era até fácil demais. Um engenheiro chegou a pedir para ele segurar os planos enquanto ia ao banheiro. Quando se trata de segurança nacional, os americanos pareciam mais afiados no discurso do que na prática.
Uma vez quase foi descoberto fuçando em uma grande caçamba de lixo. O engenheiro que passava viu aquele estrangeiro em seus macacões sujos de tinta e se atrapalhando com o idioma para dar explicações. Teve pena da situação e deu 2 dólares para ele comer algo limpo na cantina.
Voltou para casa orgulhoso. Aquela nota valia muito mais que 2 dólares, porque vinha acompanhada dos planos da próxima missão da NASA. Planos que, mais uma vez seriam redesenhados de uma forma engenhosamente codificada. Não dava para confiar em carteiros. Não dava para confiar em quase ninguém.
Sua mais recente conquista eram os planos da missão STS-73, com o trajeto e o projeto do ônibus espacial Columbia. E, tinha conseguido em tempo recorde, sem nem precisar arrumar um trabalho no complexo. Simplesmente, pediu para ir ao banheiro (sim, mais uma vez o banheiro) e no meio do caminho, encontrou os planos. Os americanos estavam cada vez mais desleixados. Nem podiam imaginar que em poucos meses, seus meticulosos planos teria cruzado o Atlântico para chegar a uma caixa postal no subúrbio de Moscou.
O destino dos documentos é claro que não eram os quartéis russos. Informações tão sigilosas exigiam cuidados extremos. As cartas eram cuidadosamente despachadas com informações que poderiam facilmente ser confundidas com receitas culinárias francesas feitas com ingredientes frescos. Ou estudos curiosos sobre a eficácia de irrigar levemente o solo com Merlot para obter melhores resultados. O disfarce era perfeito.
A última carta era sua obra-prima. Ele sabia que estava cada vez melhor, como acontecia com os bons vinhos. Na carta em questão, tudo sobre a missão STS-73 estava transcrita em um tratado sobre a melhora no sabor do leite de vacas que ouviam Ravel diariamente. Poucas pessoas no mundo poderiam identificar as reais informações que foram parar em uma caixa postal no subúrbio de Moscou, em uma casa aparentemente abandonada.
Um olhar mais atento indicaria que a casa não apenas parecia abandonada, mas estava assim há alguns anos. O lugar pertenceu a um ex-capitão da inteligência que agora, não se importava mais com o ônibus espacial que seria lançado nos próximos meses pelos Estados Unidos, em novembro de 1995.
Era uma pena que a União Soviética já tinha acabado quando chegava ao auge a carreira de um de seus mais valorosos e brilhantes espiões. Mas acontece. Nem todos os gênios conseguem estar à frente do seu tempo. Alguns, não conseguem nem mesmo estar em sincronia com seu próprio tempo.
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