O navio assombrado














A construção era imensa. Toneladas de aço tão bem conservado que nem parecia ter mais de 100 anos. Estava impecável, mesmo com todos sabendo que já havia sofrido um grave acidente há alguns invernos. O único sobrevivente da tripulação tinha sido o capitão.

A história de como tudo aconteceu nunca foi totalmente revelada. O que foi noticiado é que estavam transportando cargas valiosas com microchips. E, preferiram navegar por águas mais rasas e cheias de obstáculos, ao invés de águas profundas muito frequentadas por navios piratas, menores e mais rápidos.

Parecia o plano perfeito, afinal, os caminhos tortuosos eram conhecidos por toda a tripulação. Não era nem a décima e nem a centésima vez que eles passavam por lá. Agora, você deve estar se perguntando: por que diabos um pequeno navio pirata não se atreveria a navegar as mesmas águas rasas? Afinal, se eles são menores, logo, o risco também é menor.

O motivo aqui é simples: demanda. No mar aberto seria possível encontrar muito mais navios grandes com cargas valiosas e tribulações inexperientes. Dá menos trabalho encontrar e conquistar um navio no mar aberto, todo bom pirata sabe disso. O problema é que, como em toda profissão, também existem piratas incompetentes.

Tanto que na fatídica noite não aconteceu um ataque. Um pequeno navio pirata estava à espreita de qualquer carga rica que pudesse encontrar. Enquanto esperava por uma presa, ao tentar fugir das águas rasas acabou batendo em um rochedo. Ao testemunhar o naufrágio por perto, o grande navio mercante foi ao resgate.

Enganados por uma parte submersa do pequeno navio pirata, os tripulantes do navio mercante acabaram desviando da rota e também se chocaram com as rochas. E, descobriram da pior forma que o exato ponto em que eles estavam era a formação um cânion marítimo. Assim, o pequeno navio foi sugado para as profundezas do oceano. O grande navio sobreviveu com duras perdas, inclusive, de toda a sua tripulação, exceto pelo capitão.

Desde aquela noite, muita coisa mudou na grande embarcação. Após a reforma e seu retorno aos mares, todo inverno o navio era assombrado. Na calada da noite, sons indicavam o funcionamento de umas segunda casa das máquinas, em uma parte remota do navio. Muitos diziam ser os espíritos dos antigos tripulantes que voltavam a trabalhar na embarcação. Ninguém tinha coragem de chegar perto do local. Na verdade, muitos dos novos tripulantes pediam demissão logo após as primeiras experiências sinistras.

Até que chegou mais um inverno e, após novos pedidos de demissões, foi preciso fazer novas contratações. — Assombrado ou não, um navio não pode parar.
Disse o imediato para a sua recém-contratada integrante da tripulação.

A marinheira estava curiosa com toda a história que ouvia há anos, e também empolgada por finalmente, conseguir trabalhar em um grande navio. Melhor ainda, o famoso navio com duas casas de máquinas. Ela perguntou: — Você não acredita que ter uma mulher no navio dá azar?

O imediato não precisou pensar muito para responder: — Muitos navios já afundaram sem ter uma única mulher a bordo. Parece que acreditar em superstições não foi de muita ajuda para eles, não é? Falando nisso, o navio não é assombrado. Esqueça essa história.

Ela esqueceu. Por alguns dias, porque certa manhã, um dos moços do convés disse que passando pelo corredor ouviu uma casa das máquinas funcionando em um canto obscuro do navio. Como dizia a lenda deveria ser a tripulação antiga em sua casa das máquinas fantasma. Ele ainda disse que teve coragem de chegar um pouco mais perto e, tudo acontecia em um lugar com dezenas de portas fechadas. Ninguém sabia o que havia por trás delas.

A partir do momento em que ouviu o relato do corajoso e ao mesmo tempo, medroso moço do convés, a cada turno noturno, a marinheira dava um jeito de passar pela região das portas fechadas para tentar ouvir algum som estranho. Foi em uma dessas noites que ela finalmente ouviu a casa das máquinas funcionando. Andou pelo corredor e passou por todas as portas fechadas. O barulho vinha da última porta. Era só abrir que o mistério estaria resolvido para sempre. Mas a porta estava trancada.

Sem ter que pensar muito, ela pegou um grampo de seu cabelo e o usou para mexer na fechadura. Depois de alguns instantes, pensou ouvir um barulho no mecanismo e achou que a porta estava pronta para ser aberta. Para a sua decepção, a porta continuava trancada. Ainda mais curiosa a ponto de ser menos cuidadosa, ela foi até a sua cabine e pegou uma ferramenta essencial para todos que já viveram dias difíceis: um pé de cabra. Foi preciso forçar uma, duas… Três vezes e a porta foi aberta. Então, ela descobriu que o lugar era uma despensa usada para bebidas. E ali no chão, roncando em um volume sobrenatural, com uma garrafa de rum quase vazia em uma das mãos estava o capitão.

Decepcionada e irritada, a marinheira começou a caminhar de volta para o seu posto. Neste momento, o imediato veio em sua direção e disse: — Faz um tempo que suas rondas estão vindo para esses lados. Encontrou alguma coisa?

Ainda com o pé de cabra na mão, a marinheira respondeu: — Encontrei a casa das máquinas fantasma, também conhecida como o nosso capitão. Você estava certo, o navio não é assombrado.

O imediato, então, disse: — Por favor, não conte para ninguém. Por todos esses anos, nenhum das centenas de marinheiros supersticiosos que passaram por este navio teve coragem de encontrar a verdade. O navio é assombrado pelo remorso do capitão. Todo inverno, ele lembra do acidente e, principalmente, lembra que foi ele quem quis resgatar o pequeno navio sem identificação, que com certeza era pirata. Claro que ele nem desconfiava que aquela decisão custaria tantas vidas. A terapia dele até hoje são muitas doses de rum, até dormir inconsciente.

Ainda desapontada, a marinheira, então falou: — Se você prefere assim, em respeito e à confiança que toda a tripulação tem por você, não vou falar a ninguém sobre o capitão. A verdade é que ele nunca deveria ter tentado salvar aqueles piratas.

O imediato respondeu: — Eu também acreditava nisso. Mas ele me diz o tempo todo que se não tentasse salvar o navio em perigo, de qualquer forma, conviveria com um remorso. Diferente, mas ainda assim, um remorso. Ele fez uma escolha que eu também não concordo, mas sempre que posso, agradeço ao capitão por ela. — E por que você agradeceria por essa decisão de merda? — perguntou a marinheira.

Surpreso com a ingenuidade dela, o imediato, com um sorriso torto falou: — Você não sabe? O pequeno barco pirata tinha um capitão incompetente. Que sobreviveu ao naufrágio e, na opinião do capitão deste navio aqui, se tornou um competente imediato.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Cachorro 2.0

O cavalo encantado

Roubo perfeito