Atrasado
Acordou meio perdido. Onde estava? Ainda na cama, olhou em volta e percebeu inúmeros pôsteres da sua banda preferida. Sim, estava no seu quarto. Que ressaca! Estava com dor de cabeça, ainda meio tonto e sua boca além de seca, sentia um gosto de sola de sapato. Não deveria ter exagerado tanto. Imagina se tivesse alguma coisa importante para fazer hoje. Peraí, ele tinha uma coisa importante para fazer hoje.
Era o dia do show da sua banda favorita. O pop que conseguia unir simplicidade e sofisticação. Músicos que tinham extremo talento e ao mesmo tempo, a capacidade de encantar multidões. Um fenômeno épico, sublime. Ele havia comprado os ingressos há quase um ano, estava ansioso por esse dia. Tão ansioso que não conseguia dormir e teve que ir até o bar da esquina beber com os amigos para esquecer um pouco o assunto. Esqueceu até demais.
Que horas eram? Seu celular estava sem bateria. Ótimo, além de tudo, ia ter que carregar o celular antes de sair. Encontrou seu relógio e descobriu que estava atrasado, muito atrasado. O show aconteceria em um estádio do outro lado da cidade, e ele queria pegar um bom lugar perto do palco. Não adiantava simplesmente chegar na hora certa e acompanhar tudo pelo telão. Se fosse para ver o telão, ele ficaria em casa vendo os vídeos da banda.
Enquanto carregava o celular (no modo avião para agilizar o processo), decidiu fazer tudo muito rápido: tomar banho, se trocar, escovar os dentes, almoçar… Opa, era melhor ter almoçado para depois escovar os dentes. Tudo bem, ele escovou os dentes de novo e saiu de casa. Sorte que o ponto de ônibus era na sua rua.
Parecia que naquele dia o ônibus estava demorando mais do que de costume. Quando finalmente chegou, estava cheio. Não do tipo cheio que você precisa sair pedindo licença para passar. Cheio do tipo que você tem que se espremer e ficar pedindo desculpas a cada passo. Nunca tinha visto aquela linha tão lotada. O jeito era esperar o próximo.
Mais uma pequena eternidade passou até que o próximo ônibus chegou. Dessa vez, perfeitamente vazio com aquele ar de civilidade que as grandes cidades só têm durante o feriado, quando metade da população vai viajar para outros lugares. Deu um passo para subir no ônibus e percebeu que estava usando seu tênis laranja. Estranho… Tinha certeza de que tinha calçado seu tênis azul hoje. Então, olhou para o outro pé: tinha o seu tênis azul.
Pensou um pouco e chegou à conclusão de que no show ninguém olha para o chão. Ou pelo menos, não com tanta atenção. E quanto às pessoas no caminho, ninguém nem conhecia ele ou se conhecesse, que diferença iria fazer? Poderia dizer que é um estilo novo, ou simplesmente dizer a verdade. Não. Se ele já tinha pensado em tudo isso em uma fração de segundos, iria passar o dia inteiro se remoendo por estar com um pé de cada tênis. Pediu desculpas ao motorista e desceu do degrau do ônibus. Tinha que voltar para casa urgentemente.
Mais uma vez, estava de volta ao ponto de ônibus. Mais uma vez o ônibus chegou. Mais uma vez estava vazio. Embarcou e tentou aproveitar o caminho. Ou pelo menos, o trânsito. Será que todo mundo estava indo para o mesmo show? Após muito tempo, o ônibus começou a andar mais rápido. Ele percebeu que o trânsito tinha sido causado por uma batida envolvendo um carro de palhaços. Conseguiu contar 15 palhaços feridos. Talvez, tivessem mais.
Depois de passar por mais algumas ruas e avenidas, finalmente estava onde queria: a estação de metrô. Antes de entrar na estação, teve que desviar de alguns voluntários de ONGs que ficavam na entrada em busca de novos sócios. Teve que repetidamente dizer que estava atrasado, muito atrasado. Atrasado mesmo. Não o “atrasado” para dar uma desculpa que nem as outras pessoas falavam.
Ele chegou na catraca do metrô e lembrou. Lembrou que esqueceu o bilhete. Pelo menos, a fila da bilheteria não estava tão grande. Só demorou alguns minutos para ele estar de volta à catraca, para então, pegar o metrô. Eram só seis estações, nada demais. Passou uma, duas, três… E ele percebeu que estava no sentido errado. Deveria ter reparado que não tinha visto ninguém vestindo a camisa da banda, nenhum sinal do show.
Desceu na próxima estação, subiu a escada, atravessou a plataforma e pegou novamente o metrô. Agora no sentido certo. Faltavam só 10 estações. Pelas suas contas, demorava algo entre 2 e 3 minutos em cada estação, então provavelmente estaria lá no máximo em meia hora. Não era o ideal, mas teria quer servir.
Após 7 estações, o metrô parou e apagou a luz. Uma voz disse que tinha um objeto na linha. Quem era o idiota que deixava cair um objeto na linha num dia como aquele, em que tudo que ele precisava era de agilidade? Enquanto pensava no tipo de idiota que poderia fazer isso, o metrô voltou a funcionar.
Finalmente, chegou à estação perto do estádio. E inesperadamente não tinha nenhuma multidão ali. Viu apenas uma pessoa com uma bandana da banda. Quando encontrou alguns policiais para perguntar onde era a entrada para o show, eles disseram que o show seria só no dia seguinte.
O sentimento do fracasso era indescritível. Tinha passado por tudo aquilo só para ver sua banda favorita de perto. Ainda estava de ressaca e o show seria só amanhã. Então, começou a prestar atenção perto do portão e viu centenas de barracas de acampamento formando uma gigantesca fila. Uma multidão estava preparada para o show do dia seguinte. Realmente, ele estava mais adiantado e mais atrasado do que imaginava.
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